Vocês se lembram daquela música do Falcão, que falava que “homem é homem, menino é menino, macaco é macaco, e viado é viado”?

Quando essa música foi lançada, eu era um adolescente, já sabia que era veado (eu gosto de escrever com “e” mesmo), mas tinha medo que as pessoas descobrissem que eu era veado. Por isso, como muitos homossexuais, interpretei o papel do menino heterossexual. Sentia culpa e vergonha por isso.

Hoje, décadas depois, penso nos papéis que interpreto. Vejo que os heterossexuais também se sentem sobrecarregados de interpretar o personagem heterossexual. Que muitos veados também se cansam de interpretar o papel do veado. “E se veado não for veado?”, essa pergunta me ocorreu.

Não sei se vocês têm acompanhado, mas na comunidade LGBT+ está em curso um debate sobre se os personagens gays podem ser interpretados por heterossexuais. É claro que entendo a questão por trás dessa discussão, sobre representatividade e tudo mais. Porém, ao mesmo tempo, me pergunto: então atories vão ter que definir sua orientação sexual para escolher papéis compatíveis com ela? E se não tiverem muita certeza? E se, nas experiências da vida, descobrirem-se outras, outros, outres? 

A sexualidade é um universo: imensurável, em movimento. Não se dá a conhecer por inteiro.

A palavra hipócrita vem do grego antigo “hipocrités”, que quer dizer ator. Se você conversar sobre isso com a galera do teatro, vai ver que há muitas discussões sobre em que consiste esse trabalho. Qual o verbo para definir seu ofício? Eles/elas atuam? Interpretam? Vivem? Fingem? Mediam? Emprestam-se? Encarnam? Emanam?

Hoje penso no quanto gosto de interpretar (fora dos palcos) outros papéis. Algo que, lá na minha adolescência, parecia sofrido e vergonhoso, hoje parece divertido e libertador. Não ser um só. Poder encarnar, poder brincar, poder fingir, pode assumir, poder me surpreender com os papéis que nem são tão distantes de mim como eu imaginava.

Veado é veado, mas pode ser também um tanto de outras coisas, né?

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As crônicas com a tag “Isso foi uma pergunta?” são escritas pelo Ulisses Belleigoli e também estão disponíveis no perfil do Instagram @aquinavaranda.

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