LiteraturaProva dos 9

9 melhores livros de 2019 (literatura estrangeira)

No campo da literatura estrangeira de ficção, não temos do que reclamar: o ano foi excelente. Abaixo, você encontra aqueles que, em minha opinião, são os nove melhores livros de 2019. Eles estão listados em ordem alfabética; se você estiver curioso para saber quais livros estão no pódio, terá que esperar até o dia 29 de dezembro, quando colocaremos no ar um podcast especial com os Melhores do Ano.

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(ed. Alfagura, trad. Renato Marques)

Arquivo das crianças perdidas, de Valeria Luiselli

A crise migratória na fronteira entre EUA e México é o pano de fundo do último romance da mexicana Valeria Luiselli, chamado Arquivo das crianças perdidas. A cada ano, milhares de pessoas tentam cruzar a fronteira e várias são detidas ou, pior, morrem. Estima-se que, em 2018, quase 300 pessoas morreram tentando chegar aos EUA, mas provavelmente esse número está subestimado. A situação é ainda mais desesperadora para as crianças, pois várias estão desacompanhadas e, quando não são detidas em situações degradantes, acabam perdidas no deserto. Essa triste realidade é paulatinamente inserida na história do livro, que narra a viagem de uma família (mãe, pai e dois filhos) que sai de Nova York em direção ao Arizona. No carro, as notícias sobre a crise migratória não param de surgir e, quanto mais a família se aproxima da fronteira, elas vão ganhando ainda mais força. A genialidade da escritora Valeria Luiselli está na forma como ela incorpora uma crise mundial no drama de uma família, pois a proximidade com a fronteira não revela somente um desastre humanitário, mas evidencia também as rachaduras na relação conjugal entre a mãe e o pai, que, por sua vez, impactam na vida dos filhos.

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(ed. Todavia, trad. Fernanda Abreu)

Esboço, de Rachel Cusk

Esboço é o primeiro livro de uma trilogia que colecionou elogios do público e da crítica, e não sem razão. Basta ler o primeiro capítulo para perceber que estamos diante de algo diferente de tudo que já publicado. O livro é narrado em primeira pessoa por uma escritora inglesa que está a caminho da Grécia para lecionar em uma oficina – e isso é basicamente tudo o que ficamos sabendo da sua vida. Outras informações vão surgindo como que a conta-gotas, mas esse não é o foco: é até divertido ir juntando as informações pessoais que a narradora revela ao longo da narrativa, mas o que interessa mesmo são as personagens que ela encontra no caminho. O livro é basicamente uma série de encontros e conversas com diversas pessoas. E conversas não é a palavra correta: está mais para monólogos. As pessoas que a narradora encontra falam, falam, falam sem parar, sobre os mais variados assuntos. Elas falam sobre a família, o trabalho, os amores e as paixões – elas falam sobre a vida. E a narradora (e o leitor) escuta. É curioso: acompanhamos uma narradora durante todo o livro, mas ela não parece ser a personagem principal. Esboço é o um livro que nos ensina a ouvir e, ao mesmo tempo, aponta para caminhos ainda não desbravados pela literatura.

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(ed. Todavia, trad. Rogério Galindo)

Mars Club, de Rachel Kushner

O livro anterior da escritora americana Rachel Kushner, “Os Lança-Chamas”, foi publicado no Brasil em 2014 e apareceu em várias listas de melhores livros daquele ano. “Os Lança-Chamas” é um livro que escancara a sua excelência; nem mesmo o leitor mais desatento consegue sair incólume, pois a cada página há uma descrição, diálogo ou frase que chama a atenção (um prato cheio para aqueles que gostam de ler com um lápis na mão). Já o seu último livro, Mars Club, publicado este ano no Brasil, demonstra as suas qualidades de uma forma mais sutil. A própria linguagem é mais sutil: as frases são curtas e diretas, secas até. E faz todo o sentido que seja assim. No início do livro somos apresentados à narradora, Romy Hall, que está a caminho da prisão aonde cumprirá duas sentenças perpétuas. As aberrações da vida carcerária, a solidão, a infância infeliz e a saudade do filho são contadas de forma tão contagiante que o leitor, sem perceber, leu metade do livro em uma sentada. Em comparação com “Os Lança-Chamas”, quem lê com um lápis na mão terminará a leitura de Mars Club com poucos trechos grifados, mas o sentimento não será muito diferente: Rachel Kushner conseguiu, de novo.

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(ed. Companhia das Letras, trad. Julia Debasse)

Maternidade, de Sheila Heti

O tema da maternidade já foi amplamente abordado na literatura, sob os mais diferentes aspectos. Em geral, esse tema é discutido depois da concepção ou do nascimento; mas há uma situação, cada vez mais em voga, que ainda precisa ser desbravada pela literatura: a maternidade no seu oposto, ou seja: quando a mulher não quer ter filhos. Não há mulher que não queira ter filhos que já não teve que responder, ao menos uma vez, o porquê da sua escolha. Talvez a insistência dessa pergunta esteja relacionada com a ideia (ignorante, para dizer o mínimo) de que a mulher só é completa quando é mãe; ou talvez seja só uma curiosidade ou tentativa de puxar conversa. Não importa: a pergunta “por que você não quer ter filhos?” esconde uma recriminação que muitas mulheres não aceitam mais (como no artigo que a atriz Jennifer Aniston escreveu em 2016 para o jornal Huffington Post, quando afirma “Não estou grávida. Estou farta.”). Essas questões já foram discutidas pela escritora chilena Lina Meruane no ensaio “Contra os filhos” (2018, ed. Todavia), mas ainda faltava a abordagem da literatura de ficção, pois, como escreveu o romancista Henry James, às vezes precisamos nos refugiar “no terreno mais sólido da ficção, por onde de fato serpenteava o rio azul da verdade”. Felizmente, essa lacuna foi suprida com a publicação de Maternidade, da escritora canadense Sheila Heti. Um romance que transita entre o ensaio e a ficção, filosófico em algumas partes e experimental em outras, mas sempre corajoso. “Não ser mãe é o mais difícil”.

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(ed. Todavia, trad. Juliana Cunha)

Meu ano de descanso e relaxamento, de Otessa Moshfegh

Meu ano de descanso e relaxamento, da americana Otessa Moshfegh, é uma narrativa em primeira pessoa na qual uma mulher (nunca nomeada) quer levar adiante o plano de dormir durante um ano inteiro. Absurdo em um primeiro momento, essa plano começa a se tornar mais sensato quando o próprio leitor percebe que já pediu ou sonhou com a mesma coisa (quem nunca quis dormir e só acordar depois que determinado problema estivesse resolvido?). Mas a diferença entre a narradora do livro e nós, leitores, é que ela realmente quer executar esse plano. Otessa Moshfegh consegue equilibrar com destreza a linha que separa o crível do absurdo, pois em vários momentos o leitor irá se questionar quanto à estranheza da história, em especial nas cenas que envolvem a psiquiatra responsável por prescrever os remédios que irão derrubar a narradora. Mas, com o passar da história, conhecemos melhor a personagem principal, a sua história, a relação problemática com os pais, os seus traumas – e aí tudo faz sentido. Em uma página você se verá gargalhando e, na outra, procurando um papel para secar as lágrimas. Para mim, o livro mais surpreendente do ano.

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(ed. Todavia, trad. José Geraldo Couto)

O que te pertence, de Garth Greenwell

O incrível romance O que te pertence, do americano Garth Greenwell, narra a relação de um professor de inglês com Mitko, um garoto de programa que ele conhece no banheiro público do Palácio Nacional da Cultura de Sófia, na Bulgária. A Varanda gostou tanto do livro que ele foi assunto de um dos episódios do nosso podcast. Confira aqui a conversa.

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(ed. Harper Collins, trad. Rogério Galindo)

O reformatório Nickel, de Colson Whitehead

O escritor americano Colson Whitehead já publicou seis romances, sendo o primeiro deles de 1999. Dezessete anos depois, com a publicação de “The Underground Railroad: os caminhos da liberdade” (lançado no Brasil em 2017 pela editora Harper Collins), um épico sobre a escravidão norte-americana, ele alcança a aclamação universal. O romance venceu o Pulitzer e o National Book Award, colocando Colson Whitehead no grupo dos melhores escritores em atividade. Seu último romance, O reformatório Nickel, foi publicado esse ano e mais uma vez mostra o enorme talento do autor. Nele, acompanhamos dois adolescentes que estudam na escola segregada que dá título ao livro, local para onde são encaminhados os “jovens delinquentes” condenados pela justiça. Colson teve a ideia para o romance depois que leu sobre a Escola Dozier, que funcionou entre os anos de 1900 e 2011 no estado da Flórida, e que, hoje se sabe, torturava os jovens que para lá eram enviados (estima-se que 100 jovens tenham morrido na escola). Com esse sinistro pano de fundo, Colson produz um romance histórico que expõe não só a imoralidade e a injustiça, mas principalmente a perversidade da segregação racial.

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(ed. Companhia das Letras, trad. Débora Landsberg)

Pessoas normais, de Sally Rooney

A irlandesa Sally Rooney é um fenômeno editorial. Com 28 anos, já publicou dois romances que foram traduzidos para dezenas de países. O primeiro, “Conversas entre amigos” (2017, ed. Alfaguara), fez-na ser reconhecida como “a voz da geração millenial”. E não há como negar o frescor desse romance de estreia. A trama é simples, quase um clichê: uma jovem se apaixona por um homem casado. Entretanto, a linguagem direta e a forma como as relações entre as personagens são apresentadas aparentam uma simplicidade que é, na verdade, difícil de alcançar. Mérito da autora. Já o seu segundo livro, Pessoas normais, consegue a proeza de ser ainda melhor que o primeiro. Há semelhanças: a trama continua simples – uma relação entre dois jovens de classes sociais distintas – e a linguagem direta. Mas parece que ela usa dos mesmos elementos do romance anterior e sobe um nível. A linguagem garante uma enorme legibilidade (não será difícil terminar o livro em poucos dias) e as personagens – assim como as relações entre eles – são ainda mais poderosas que no romance anterior.

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(ed. Todavia, trad. Olga Bagińska-Shinzato)

Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk

A polonesa Olga Tokarczuk foi uma das escritoras mais elogiadas pela crítica norte-americana no ano passado. O motivo foi a tradução do seu livro “Flights” (que, pasmem, foi publicado no Brasil em 2014 pela editora Tinta Negra com o título de “Os Vagantes”; a recepção da crítica brasileira beirou o inexistente). O livro ganhou o Man Booker International Prize em 2018 e, no dia 10 de outubro de 2019, Olga Tokarczuk ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Para a felicidade dos leitores brasileiros, a editora Todavia possui um faro aguçado e já tinha comprado os direitos para a publicação do Sobre os ossos dos mortos. Um misto de suspense e reflexão filosófica/ecológica, o livro é narrado pela professora Janina Dushelko, moradora de um vilarejo polonês problemático por dois motivos: as baixas temperaturas entre os meses de outono e abril e por lá ser uma área de caça. O último motivo é especialmente problemático para a narradora, pois, além de devota da obra de William Blake, ela é amante dos animais e da natureza. Quando assassinatos começam a acontecer no vilarejo, Janina começa a se perguntar se o motivo não seria vingança – dos animais em relações aos homens. Impossível terminar a leitura sem a vontade de ler os demais livros da autora.

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Guilherme Madeira Martins é professor e criador do projeto Direito & Cinema. É um dos anfitriões da VARANDA.

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