CinemaProva dos 9

9 FILMES QUE ABORDAM A DISTÂNCIA ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA

Quando eu entrei na Faculdade de Direito, acreditava que Direito e Justiça eram sinônimos; acreditava que o papel do advogado era buscar a justiça e que a decisão do juiz fosse a tradução da justiça; acreditava que o termo “lei injusta” era uma contradição.

Quão ingênuo eu era…

Mas essa ingenuidade foi destroçada logo nas primeiras aulas, quando os professores narraram situações e recomendaram leituras que demonstravam o abismo que às vezes existe entre o direito e a justiça. E a percepção desse abismo, ao invés de causar uma crise existencial que poderia me levar a escolher outro curso universitário, acabou me dando um ânimo ainda maior. A percepção desse abismo acabou se mostrando um enorme estímulo intelectual, que perdura até hoje.

(Advinha qual foi o tema do meu trabalho de conclusão de curso?)

E qual não foi a minha surpresa ao perceber que vários cineastas também se interessam por esse mesmo abismo… Sidney Lumet, diretor de grandes “dramas de tribunal” como 12 homens e uma sentença (1957) e O Veredito (1982), disse em uma entrevista: “Vamos começar com uma declaração muito simples: se o direito não funciona, nada consegue funcionar em uma democracia. O direito é a base de tudo. Então você vê a separação entre o direito e a justiça. Como todo jurista sabe, as vezes eles não andam juntos. Advogados utilizam o sentido literal da lei para, em certo sentido, escapar à justiça da situação. É este tipo de complexidade, na qual há uma separação entre o direito e aquilo que a justiça realmente é, que me fascina”.

Não estou sozinho na minha fascinação pelo tema. Abaixo, 9 filmes que abordam a distância entre o direito e a justiça.

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1. Filadélfia

Na superfície, Filadélfia é um drama de tribunal: um jovem e promissor advogado (Andrew Beckett, interpretado por Tom Hanks) é demitido depois que os sócios do escritório em que trabalha descobrem que ele é HIV positivo; com a ajuda de outro advogado (Joe Miller, interpretado por Denzel Washington), ele processa os sócios do seu antigo escritório por demissão injustificada e discriminatória. Na essência, e graças à direção de Jonathan Demme – que consegue filmar o preconceito em todas as suas representações, desde as falas grosseiras e ignorantes até as sutilezas no olhar e no toque –, Filadélfia é um filme sobre empatia. Sobre sentir na pele o que é o preconceito e a injustiça.

Já a distância entre o direito e a justiça aparece em uma fala de Andrew durante o seu depoimento pessoal. Quando lhe perguntam o que ele mais ama no direito, sua resposta é, em minha opinião, uma das linhas de diálogo mais bonitas do cinema: “O que eu mais amo no direito? É que, de vez em quando, não com frequência, mas ocasionalmente, pode-se participar da justiça sendo feita. Isto é emocionante, quando acontece”.

Filadélfia (de Jonathan Demme, 1993)

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2. O segredo dos seus olhos

Já perdi a conta de quantas vezes assisti a esse filme. Mais de vinte. (Em minha defesa: exibo esse filme todo semestre para os meus alunos.)

A história é típica das tramas policiais. Um assassinato brutal e a investigação para descobrir o assassino. Mas não se deixe desanimar pelo clichê: a história pode ser típica, mas a execução é primorosa.

A distância entre o direito e a justiça permeia o filme como um todo, mas há um momento em que ela ganha destaque: no final. O final desse filme é um dos mais inesperados e chocantes que já vi – e o choque não passa depois de ter visto a cena. É claro que eu não vou dizer o que acontece na cena; só irei justificar a inclusão desse filme na lista porque a cena retrata algo que é claramente ilegal, mas que, ao mesmo tempo, você fica se perguntado se não seria o mais justo naquela situação. Ao fim e ao cabo, você pode até chegar à conclusão que aquilo não é o justo, mas a pergunta ficará martelando a sua cabeça por um bom tempo.

O Segredo dos Seus Olhos (de Juan José Campanella, 2009)

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3. Conduta de risco

Michael Clayton (interpretado pelo George Clooney) é um advogado que trabalha em um grande escritório de Nova York. Sua especialidade é desaparecer com os problemas (legais ou não) dos seus clientes. Em uma das primeiras cenas do filme, ele diz para um cliente que fugiu após atropelar uma pessoa: “Eu não faço milagres. Sou um faxineiro. A equação é simples. Quanto menor a sujeira, mais fácil é para limpar”.

Essa visão nada idealista da profissão é confrontada quando ele é chamado para resolver um problema envolvendo um colega do escritório, o advogado Arthur Edens (Tom Wilkinson). Arthur estava trabalhando na defesa de um grande cliente – um conglomerado de produtos agrícolas acusado de utilizar sementes cancerígenas – e de repente surta no meio de uma audiência. Ele tira a roupa, ficando somente de cueca e meias, e ainda começa a declarar o seu amor para uma testemunha da parte contrária (!). E tudo filmado pelo circuito interno do tribunal (!!). O motivo do surto? Para não entregar muito do filme, vou me limitar a dizer que ele teve uma crise de consciência. Como ele diz para o Michael: “Por 6 anos absorvi esse veneno. 400 depoimentos, 100 petições, 5 mudanças de local de julgamento, 85.000 documentos em publicação compulsória! 6 anos maquinando, protelando, gritando. E o que consegui? Passei 12% da minha vida defendendo um herbicida mortal”.

Como varrer para debaixo do tapete um problema como esse?

Conduta de Risco (de Tony Gilroy, 2007)

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4. Relatos selvagens

Uma analogia com a literatura: enquanto a maioria dos filmes se parecem com romances de 300 páginas, Relatos Selvagens é uma coletânea de contos. São seis histórias curtas, que variam entre 5 e 30 minutos de duração. À primeira vista, as histórias parecem não dialogar entre si: todas são autossuficientes, e você pode alterar a ordem em que as verá, sem qualquer prejuízo. Terminamos o filme com a impressão de que acabamos de assistir seis (excelentes) histórias que mostram como mesmo a pessoa mais pacata é capaz de atos de selvageria quando diante das insanidades da sociedade contemporânea. O próprio título do filme dá azo à essa interpretação. Mas, quando assistimos a essas histórias uma segunda vez, percebemos que há alguns temas recorrentes. Um desses temas é a distinção entre o direito e a justiça. A impressão que dá é que o diretor/roteirista quis mostrar esse tema em suas diferentes representações: há a mulher que se questiona se o assassinato de uma pessoa não seria uma forma de justiça; o advogado que é duplamente corrupto, superfaturando (em prejuízo do seu cliente) o valor da propina paga a um policial; e o cidadão que comete atos terroristas para demonstrar a injustiça do Estado. Sob essa ótima, terminamos de rever o filme questionando se a distância entre o direito e a justiça não seria uma característica das sociedades contemporâneas.

Relatos Selvagens (de Damián Szifron)

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5. Mar adentro

Cinebiografia do espanhol Ramón Sampedro. Com 25 anos de idade, ao mergulhar no mar a partir de um rochedo, chocou a cabeça contra a areia e fraturou a 7ª vértebra cervical, ficando tetraplégico. Durante 30 anos ele lutou pelo direito de morrer dignamente por meio da eutanásia. Para ele, viver nessa condição era o mesmo que viver no inferno. No livro “Cartas do Inferno”, publicado com a ajuda da família, Ramón escreve: “No dia 23 de agosto de 1968 fraturei o pescoço ao mergulhar em uma praia e bater com a cabeça na areia. Desde esse dia sou uma cabeça viva e um corpo morto. Se eu fosse um animal, teria recebido um tratamento de acordo com os sentimentos humanos mais nobres. Teriam posto fim à minha vida porque lhes pareceria desumano deixar-me nesse estado pelo resto da vida”. Ramón Sampedro teve todos os seus pedidos para ter a vida abreviada negados pela justiça espanhola.

Há vários filmes que abordam a temática da eutanásia ou da morte digna – como Menina de Ouro e Invasões Bárbaras, para citar filmes premiados no Oscar –, mas Mar Adentro é um dos melhores.

Mar Adentro (de Alejandro Amenábar, 2004)

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6. Medo da verdade

Uma cena justifica a inclusão desse (ótimo) filme na lista. É o final do filme. Aqui, minhas mãos estão atadas (por um motivo óbvio: spoiler). Não posso te dizer o que acontece. Você terá que assistir. E eu garanto que, quando terminar o filme de assistir ao filme, você não terá dúvidas sobre a ilegalidade do que acabou de ver – mas, ao mesmo tempo, se pegará questionamento se aquilo não seria o justo. (Se você assistir o filme acompanhado, prepare-se para os debates que, inevitavelmente, se seguirão. Eu e minha esposa, por exemplo, estamos debatendo o final desse filme até hoje.)

Medo da Verdade (de Ben Affleck, 2007)

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7. 12 homens e uma sentença

O filme que a juíza Sonia Sotomayor, da Suprema Corte americana, afirmou ter influenciado sua escolha pelo curso de Direito – e é razoável supor que ela não foi a única.

12 homens e uma sentença se passa quase que integralmente dentro de uma sala fechada. Durante quase duas horas, ficamos trancados dentro dessa sala junto com 12 jurados que precisam chegar a um veredito, unânime, sobre o caso de um jovem acusando de assassinar o pai. Em uma votação secreta que ocorre logo no começo do filme, 11 jurados escrevem em um pedaço de papel a palavra culpado, enquanto somente um jurado escreve a palavra inocente. Ao enfrentar a ira dos 11 jurados que querem acabar com o julgamento o mais rápido possível, pelos motivos mais diversos (um deles possui ingresso para um jogo de baseball, por exemplo), o jurado solitário explica que não acredita na inocência do réu, mas que também não possuí convicção da sua culpa.

O que chama a atenção no filme é que em nenhum momento o jurado solitário (que no decorrer do filme deixa de ser solitário) busca encontrar a verdade ou a justiça; a única certeza que ele tem é que ele não tem certeza de nada, e o mínimo que o jovem acusado de matar o pai merece é que os 12 jurados que irão decidir sobre a sua vida tenham pelo menos o cuidado de discutir seu caso e os argumentos apresentados (e até mesmo os argumentos não apresentados).

Um clássico.

12 Homens e uma Sentença (de Sidney Lumet, 1957)

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8. O leitor

Um jovem com 15 anos de idade se envolve com uma mulher mais velha. Após alguns anos, eles perdem o contato. Ele entra para a Faculdade de Direito e, ao assistir o julgamento de membros da polícia secreta nazista acusados pelo homicídio de 300 mulheres judias que foram presas em uma igreja pegando fogo, a vê no banco dos réus.

O Leitor é uma adaptação de um romance escrito pelo alemão Bernhard Schlink, que, além de romancista, também é advogado e professor de direito. Essa bagagem jurídica é visível tanto no livro, quanto no filme, pois há várias reflexões sobre o direito, a justiça e o abismo que existe entre ambos. Nada mais oportuno, pois não há momento da história em que esse abismo foi tão profundo quanto no nazismo. Basta lembrar que todas as atrocidades cometidas tinham base legal; essa foi, inclusive, a defesa de muitos (“eu só estava seguindo a lei”).

Essas reflexões aparecem, em especial, nas cenas em que o personagem principal participa de um seminário especial na Faculdade. Em um dos encontros, o professor encarregado pelo seminário diz: “As sociedades pensam que funcionam através de conceitos morais. Mas não. Elas funcionam através de algo que se chama lei. Ninguém é culpado de nada só porque trabalhou em Auschwitz. 8 mil pessoas trabalharam em Auschwitz. Exatamente 19 foram condenadas e somente 6 por homicídio. Para provar um homicídio, você deve provar o dolo. Esta é a lei. A questão não é se foi errado, mas se foi dentro da lei. E não das leis atuais. Não. Das leis da época”. Em outro encontro, um aluno rebate: “O senhor diz para pensarmos como advogados, mas há algo repulsivo em relação a isso. Isso não aconteceu com os alemães, aconteceu com os judeus. 6 mulheres trancaram 300 judias numa igreja e as deixaram morrer. O que há para entender? Eu comecei acreditando nesse julgamento, mas agora acho que ele não passa de engodo. Você escolhe 6 mulheres, as leva a julgamento, e diz: essas são as malvadas, essas são as culpadas. É por isso que estão sendo julgadas e ninguém mais. Sabem quantos grampos havia na Europa? As pessoas continuam discutindo o quanto se sabia, quem sabia, o que elas sabiam. Mas todos sabiam! Nossos pais, nossos professores… Não é esta a questão. A questão é como pôde deixar isso acontecer. Mais ainda: por que não se matou quando descobriu?”. O professor fica sem palavras.

O Leitor (de Stephan Daldry, 2008)

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9. Loving

Até o ano de 1967, alguns estados norte-americanos proibiam o casamento inter-racial. Essa proibição foi derrubada quando a Suprema Corte americana julgou o caso Loving v. Virginia, invalidando todas as leis de proibição de miscigenação. O filme narra a história real do casal responsável pela ação judicial julgada pela Suprema Corte: Richard e Mildred Loving. Após o casamento, eles foram presos e sentenciados a um ano de prisão. Mas o juiz propõe um acordo: suspender a sentença “pelo período de 25 anos mediante a condição de que os dois deixem o estado da Virgínia imediatamente e não voltem juntos, ao mesmo tempo, ao referido estado durante um período de 25 anos”. Não basta uma lei abominável e uma sentença deplorável – até a proposta de acordo é execrável. A distância entre o direito e a justiça na sua forma mais crua.

(Se me permitem o comentário pessoal, acho esse filme uma obra-prima.)

Loving (de Jeff Nichols, 2016)

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Guilherme Madeira Martins é cinéfilo, professor e criador do projeto Direito & Cinema. É um dos anfitriões da VARANDA.

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