Errar é humano?
Em todos os postos de verificação, sem exceção, o refugiado é questionado:
você é humano?
O refugiado tem certeza de que ainda é humano, mas teme que, de um dia para o outro,
enquanto dormia, tenham mudado os critérios.
Warsan Shire in “Bendita seja a filha criada por uma voz em sua cabeça”
(tradução de Laura Assis – Companhia das Letras, 2022.)
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Esses são os versos finais do poema “Assimilação”, da poeta queniana Warsan Shire (na tradução de Laura Assis). Lembro-me de, logo após tê-lo lido, fechar o livro e abrir alguns novos espaços. É o que fazemos quando sabemos que um verso acabou de ser impresso não apenas na nossa memória, mas na nossa vida.
Hoje, ele reapareceu aqui na minha cabeça. Eu estava rolando minha timeline do Twitter, quando li um comentário sobre a exoneração da assessora Marcelle Decothé da Silva, que trabalhava no Ministério da Igualdade Racial, sob o comando de Anielle Franco. O tweet ressoava tantos outros: um protesto contra a diferença de pesos e medidas no tratamento de homens/brancos e mulheres/negras.
Todos nós sabemos que os julgamentos – formais ou informais – levam em conta o lugar que cada indivíduo ocupa na sociedade. Pessoas com menos poder recebem punições mais duras. Pessoas com mais poder tendem a ser perdoadas, a ter os seus atos relativizados e relevados.
Uma pessoa pobre e preta pode ser encarcerada (e até morta) por pequenos delitos, inclusive quando é inocente. Porém, um homem branco e rico pode dar um golpe de 40 bilhões de reais e ainda anunciá-lo na TV, pois sabe que dificilmente será punido (até porque os responsáveis por fazê-lo são, muitas das vezes, seus aliados).
A injustiça está aí. Não dá pra negar. Inclusive, uma dica: fique com os dois pés atrás com quem nega esse tipo de injustiça; ou com quem não se incomoda com ela.
Volto agora aos versos de Warsan Shire e os coloco ao lado do dito popular “errar é humano”. Mas… quem é mesmo considerado humano? No nosso sistema capitalista (que é patriarcal, classista e racista por natureza), quem define o valor de cada vida? Quem estabelece os critérios? Quem tem poder para dizer: essa vida vale mais do que essa outra? Bem, também não podemos fingir que não sabemos essas respostas.
Apego-me então a um trecho específico (para que esse texto não seja apenas uma amarga pílula-lembrete sobre injustiças enraizadas na nossa sociedade): “O refugiado tem certeza de que ainda é humano”. Certeza. Repetindo: certeza. Se você, que está lendo esse texto, é de algum grupo que sofre com essa desvalorização (da sua vida, do seu trabalho, da sua família), não deixe essa certeza sumir de vista. Se você é um privilegiado e ninguém coloca em dúvida o valor da sua vida humana, você tem a chance de trabalhar contra essa injustiça, essa desumanização.
Termino esse texto com um pouco mais de poesia, porque realmente acredito que as palavras nos ajudam a repensar, a rever, a reorganizar – e a reinventar o mundo. São versos da poeta Laura Assis (a mesma que traduziu os versos de Shire) e estão no livro “Parkour” (que se tornou um dos meus livros favoritos da vida). Esse pequeno e potente poema me parece um bom chão para pisar; e um bom alvo para mirar.
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no limiar de tudo
que é mais perverso
ver o fogo de pertovoltar inteira:
Laura Assis in Parkour (Edições Macondo, 2022)
o incêndio
nos olhos
e um plano
nas mãos
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As crônicas com a tag “Isso foi uma pergunta?” são escritas pelo Ulisses Belleigoli e também estão disponíveis no perfil do Instagram @aquinavaranda.
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