Estabelecer um início para quando comecei a amar as histórias é impossível. Acho que é impossível para qualquer um, pois começamos a ouvi-las tão cedo (sejam as orais, as dos livros infantis ou as dos filmes) que fica mesmo difícil delimitar um começo. Contudo, consigo pensar em alguns momentos importantes da minha vida, quando penso na minha trajetória de contador de histórias.

EU, LEITOR

O primeiro deles aconteceu no meu pré-primário (eu devia ter de 6 para 7 anos). Eu já havia sido alfabetizado um pouco antes disso, quando ainda morava em Bicas (uma cidade no interior de minas que devia ter, no máximo, 10 mil habitantes). Foi uma surpresa para mim e para minha família quando descobrimos que, na escola da “cidade grande” – que, pasmem, é Juiz de Fora – as crianças da minha idade ainda não sabiam ler. O problema disso era que eu, muito falante, atrapalhava o processo dos colegas, lendo antes deles a combinação de letras e palavras colocadas no quadro. Bem, chatinho, né? Enfim, a solução veio da minha professora Eloilma, com quem nunca mais me encontrei para agradecer. Ela me deixava ficar no fundo da sala lendo livrinhos, pois concentrado nas histórias eu não interferiria na aula. Funcionou. Desde então, os livros viraram meus companheiros.

Outro momento importante foi a leitura do livro “Zezinho, o dono da porquinha preta”, de Jair Vitória. Eu devia ter meus 8 ou 9 anos. O livro integra a famosa coleção Vaga-lume, que fez parte da vida de muitos brasileiros da minha geração. Foi a primeira vez que eu chorei com um livro nas mãos. Ficava ansioso durante a leitura, saía da mesa do almoço correndo para ler mais um capítulo. Esse livro me ajudou a descobrir que havia diferentes mundos – muito reais – guardados entre as páginas.

capa do livro Zezinho, o dono da porquinha preta. A ilustração da capa mostra o rosto do menino, Zezinho, e uma porquinha preta alimentando seus filhotinhos.

Nessa mesma época, eu comecei a escrever meus livros caseiros. Não sei bem qual foi o motivador, mas lembro de, com folhas de papel ofício dobradas, criava pequenas histórias, as quais eram ilustradas por mim mesmo. Guardei um por muitos anos, porque era o meu favorito. “O dente de topázio” contava a história da investigação do roubo de um dente de um tigre de topázio, o qual compunha um totem encontrado no meio da selva.

Agora, minha sina de leitor se confirmou mesmo na 5ª séria, com minha professora Valéria. Lá em 1994, ela teve a audácia de reservar 2 das 6 aulas que tínhamos por semana para ler. Era isso: ficávamos lendo. Depois, em casa, fazíamos um diário de leitura; na aula seguinte, comentávamos os livros. Mas naqueles dois primeiros horários de quinta-feira, nós líamos. E isso foi revolucionário na minha vida. Eu já era um leitor habituado, mas agora eu tinha amigos que liam, incentivados por uma professora que gostava de ouvir o que a gente tinha a dizer sobre os livros. Até hoje, como professor, sempre penso no poder que temos de impactar a vida dos nossos alunos com ações simples e bem intencionadas.

EU, CONTADOR

A vida é feita de encontros. Alguns desses encontros mudam o nosso destino. Outros, fazem mais que isso: eles multiplicam os nossos caminhos. Foi assim quando minha trajetória se cruzou com a da Laura Delgado, uma das grandes contadoras de histórias do Brasil. A Laura tinha sido contratada pelo Granbery (minha escola querida) para ser “dinamizadora cultural” e, entre outras coisas, era responsável pela biblioteca. Em poucos meses, tudo tinha uma cara nova: os livros estavam acessíveis, havia novos volumes, ela nos ajudava e encontrar leituras. Isso foi só o começo. Depois de alguns anos, a Laura criou no colégio a “Oficina para formação de leitores e contadores de histórias”. Essa é uma história maravilhosa que não dá pra ser resumida neste texto, mas que você pode saber mais sobre clicando aqui, para ver o documentário dirigido pelo Fabrício Conde, que conta a histórias dos “Contadores de Histórias do Granbery”.

Eu nunca fui um aluno da Oficina (na época que começou, eu já tinha passado da idade). Mas colei na Laura (e na Leila Martins, uma “encantadora de histórias” que, a essa altura, já era uma das coordenadoras do projeto). Assistia as apresentações, ajudava com o que podia, recebia universos poéticos em troca. Em 2007, já com 25 anos, passei a fazer parte da Equipe Sênior, dirigida pela Laura e, desde então, subo aos palcos todos os anos para contar histórias com meus queridos amigos do Granbery.

Além disso, junto com minha amiga Natália Sigiliano, dirigi por quase 10 anos o “Ministério de Contadores de Histórias da 1ª Igreja Presbiteriana de Juiz de Fora” (criado pela Leila Martins), uma das experiências mais alegres e recompensadoras da minha vida, que infelizmente foi interrompida quando fui excomungado por ser gay (é isso mesmo que você leu). O grupo ainda existe e faz coisas lindas, as quais você pode conhecer clicando aqui.

Em 2009, o Curso de Pedagogia da Faculdade Metodista Granbery foi o primeiro a incluir em seu currículo a disciplina “Contadores de Histórias”, seguindo a tradição já consolidada no colégio, no esteio do sucesso do trabalho da Laura e da Leila. Em 2012, eu fui chamado para assumir essa cadeira, na qual permaneci até 2018, ajudando a formar professoras que – sorte a nossa – serão também contadoras (e ouvidoras!) de histórias. Esse tempo que passei dando aulas no Ensino Superior foi um arroubo de ideias e experiências. Tive alunas fantásticas, que compartilharam comigo suas histórias, saberes e desejos, o que preparou me coração para tantos outros desafios.

EU, ESCRITOR

Essa subseção talvez mereça uma outra história. Mas para não deixar passar em branco, convido você a conhecer meus livros lá na minha loja virtual. Aproveito também para repetir um aprendizado que sempre gosto de compartilhar com meus alunos: “o bom contador de histórias é o bom ouvinte”. Isso quer dizer que minha história de escritor também está diretamente ligada à minha história de leitor, da qual você já sabe um pouco.

EU, HOJE

Aprendi, com o tempo, que as histórias estão no nosso cotidiano, espalhadas nas mínimas fendas da nossa rotina. Aprendi que somos feitos de histórias. Sem histórias, não há humanidade, não há povos, não há sujeitos. Aprendi também que as histórias podem ser utilizadas como instrumentos de crescimento, comunhão e justiça… mas que também podem ser usadas para manipular, destruir e oprimir.

E tomei minha decisão: a de ouvir e contar histórias que me aproximassem de lugares bonitos e cheios de possibilidades. Agora, meus dias – no consultório, nas oficinas, nos palcos, nas páginas, lendo ou escrevendo – são assim: um passeio entre as narrativas, com pausas para poder provar as maravilhas que vou imaginando a partir das palavras ouvidas e lidas por aí (inclusive as minhas).

Há alguns anos atrás, uma criança apontou para mim na rua e falou para os pais: “Olha, o moço que conta histórias!”. Esse dia eu fiquei emocionado: tinha sido identificado como um contador de histórias. Isso era mais beleza do que eu planejava para mim mesmo. O reconhecimento era fruto das centenas de contações de histórias que fiz na vida – para crianças e adultos – em escolas, igrejas, praças e teatros. A partir de então, eu mesmo passei a me identificar assim. Sou também psicanalista, jornalista, professor e escritor. Mas quando alguém me pergunta o que eu sou, eu respondo de boca cheia: “sou contador de histórias”.

Ulisses Belleigoli é psicanalista, escritor e professor, mas gosta mesmo de ser chamado de contador de histórias. Gosta de cinema, copa do mundo, poesia e ficção científica. É um dos anfitriões da VARANDA.

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