Na semana passada, eu assisti o filme “Biônicos”, produção nacional lançada pela Netflix. Logo que saiu o trailer do filme, eu o coloquei imediatamente na minha lista, pois vi que ele abordava um assunto que muito me interessa: próteses.
Talvez esse interesse seja algo bem antigo em minha vida. Por exemplo, na minha infância, eu ficava muito frustrado por não usar óculos. Na minha adolescência, quando os amigos e os personagens de “Malhação começaram” a usar “aparelho fixo”, eu fiquei um pouco chateado por ter os dentes alinhados.
Mas eu fui captado intelectualmente por esse assunto quando, na universidade, eu tive contato com a obra do canadense Marshall McLuhan intitulada “Os meios de comunicação como extensões do homem”. O debate neste livro não é sobre próteses, mas esse título tão abrangente nunca me saiu do horizonte.
O que é uma prótese? Muitas pessoas não diriam que um óculos é uma prótese. Mas ele é. Muitos também diriam que um aparelho dentário não é uma prótese (apesar de muitos serem nomeados de próteses dentárias). Vou forçar um pouco a fronteira só para caber mais coisas dentro da reflexão: um chapéu é uma prótese? Um lápis é uma prótese? Um celular é uma prótese?
Quais são as coisas que anexamos aos nossos corpos e que podem ser consideradas extensões de nós mesmos? Toda vez que reflito sobre isso, penso em quão vasto é o universo das ferramentas que criamos para que nosso corpo viva melhor neste planeta. De sapatos a marcapassos, de perucas a peitos de silicone, de brincos a bolsas de colostomia, inventamos milhares de artefatos que nos ajudam a ajustar o nosso corpo não apenas às nossas necessidades, mas também aos nossos desejos.
Com frequência, vejo que o assunto das próteses, para muitas pessoas, está restrito ao campo das deficiências, como se as próteses fossem apenas aparatos terapêuticos, ou corretivos. Mas um dos debates que o filme traz à tona é este: e se as próteses puderem ser usadas, no esporte, de outra maneira? Não apenas para “completar” um corpo, mas para potencializá-lo, para tirá-lo do seu lugar “normal”. Afinal, já não fazemos isso? Não já criamos centenas de instrumentos para ampliar nossa capacidade de fazer o que queremos?
Um livro pode ser considerado uma prótese de memória, de pensamento? Uma bicicleta é uma prótese? Um revólver é uma prótese? O rímel é uma prótese? Uma tatuagem? Uma câmera fotográfica? Será que um band-aid pode ser assim considerado? Uma prótese pode ser descartável? Quanto tempo dura uma prótese?
Durante o filme, é impossível não ser remetido à questão do doping. O uso de drogas para melhorar as performances dos atletas é uma estratégia conhecida e combatida pelos comitês e confederações. Parece meio óbvio, né? “Não pode usar drogas para competir melhor. Seria injusto com os outros atletas”. Mas será que é tão evidente assim? Quando fui árbitro do Campeonato Brasileiro de Debates (organizado pelo IBD), eu me surpreendi com o quão rica é a discussão sobre liberar ou não o uso de substâncias para os atletas. Aposto que vocês também ficariam surpresos de saber que muitas das duplas que venceram os seus debates defenderam a liberação e a regulamentação do uso da dopagem em competições de alto nível.
Uma droga pode ser considerada uma prótese? Remédios anti-inflamatórios podem ser considerados próteses? Café pode ser considerado uma prótese? (Já estou forçando demais a barra?) Um vibrador pode ser considerado uma prótese? Seu namorado pode ser considerado uma prótese? (Parei, juro!).
Estou brincando com coisa séria (e falando muito sério com um pouco de humor) porque vivemos em um modelo de sociedade em que as pessoas, como indivíduos e como instituições, estão desejosas de legislar sobre os corpos alheios. E isso é um assunto importante, até mesmo porque os corpos podem se beneficiar de normas, diretrizes e leis (mas isso é papo para outra crônica). Por isso, pensar nas próteses e nas extensões que utilizamos para os nossos corpos (das ordinárias às extraordinárias, das permanentes às efervescentes) pode ser um caminho para pensarmos também nos limites dos nossos corpos, das nossas individualidades, das nossas subjetividades.
Brincando como o ditado: as nossas próteses devem ir somente até onde começam as próteses dos outros, ou elas podem se tocar, se entrelaçar?
Uma das coisas mais bonitas que ouvi recentemente sobre o assunto “corpo” foi dito pela psicóloga Céu Cavalcanti, no “Seminário Identidades Trans e Travestis” (para saber mais sobre esse evento lindo, vai lá nos meus destaques aqui do Instagram). A Céu fala que as pessoas trans nos lembram diariamente de que os corpos são moduláveis. É claro que são! Há milênios estamos aí, mexendo nos nossos corpos, com diversas finalidades. Esse pensamento é carregado de potência e de possibilidades (se não formos preconceituosos, nem desrespeitosos).
Sei que estou expandindo cada vez mais o alcance dessa reflexão, mas é porque, na minha opinião, ela perpassa outras discussões importantíssimas, como, por exemplo, as questões de gênero, de sexualidade, de saúde pública, ou do uso de armas. Pensar nas próteses como extensões de nossos corpos pode nos ajudar a questionar o levantamento de cercas em fronteiras e a deportação de imigrantes ilegais, na sanha de canalização de rios em centros urbanos, ou no uso desenfreado de agrotóxicos. E ainda muitas outras questões, que estão na política nossa de cada dia. Estou exagerando? Tô nada! Só estou aqui pedindo sua ajuda para conseguir olhar essa imensidão.
Ah, para todas as coisas que perguntei se são próteses ou não, respondo: são. Se quiser saber por quê, ou como esses temas da pauta contemporânea se relacionam com o assunto “próteses”, é só vir me perguntar. Vamos mergulhar juntos? (com máscaras, snorkels e pés-de-pato, talvez?)