Juiz de ForaLiteraturaPoesiaProva dos 9

9 poetas daqui que me fazem girar pelo avesso

lerei as poetas da minha cidade
até o fim do meu mundo
pois seus versos me giram pelo
avesso

Escrevi esses versos acima porque eles dizem duas verdades sobre mim. A primeira verdade é que a poesia bagunça e ordena minha vida. A outra verdade é que, na minha cidade, Juiz de Fora, há poetas que tocam a minha vida de maneira muito singular e profunda.

A cidade em que nasci (e na qual vivo até hoje) é uma terra fértil para escritores: cronistas, romancistas, memorialistas, dramaturgos, poetas, jornalistas, compositores. Aqui se escreve muito e, felizmente, se escreve bem.

Por isso resolvi fazer esta lista. Porque, como anfitrião da Varanda (que também é juizforana), lembrei-me de que sou alimentado de tantas letras bem aqui no quintal de casa. Bom pra mim.

Ah, acho importante dizer que essa atividade tão profícua é estimulada pela Lei Murilo Mendes (por meio da Funalfa), uma política pública de incentivo à cultura que completou 25 anos e que mudou o cenário cultural de Juiz de Fora.

Sobre a lista, não vou falar muito sobre a biografia dos poetas. Vou apenas apresentá-los, dizer o que neles me interessa e colocar links úteis. Preferi reservar mais espaços para os poemas – os quais podem dizer muito mais do que eu. Vamos lá?

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1. Murilo Mendes

Talvez o mais conhecido poeta da cidade, Murilo Mendes dispensa muitas apresentações. Aqui, em Juiz Fora, muitas coisas levam seu nome, entre elas o Museu de Arte Murilo Mendes, onde se pode saber mais sobre a relevância cultural desse artista. Do Murilo, gosto de sua relação com as coisas grandiosas: o tempo, o universo, os deuses, o inexplicável, o oculto.

FIM

Eu existo para assistir ao fim do mundo.
Não há outro espetáculo que me invoque.
Será uma festa prodigiosa, a única festa.
Ó meus amigos e comunicantes,
tudo o que acontece desde o princípio é a sua preparação.

Eu preciso assistir ao fim do mundo
para saber o que Deus quer comigo e com todos
e para saciar minha sede de teatro.
Preciso assistir ao julgamento universal,
ouvir os coros imensos,
as lamentações e as queixas de todos,
desde Adão até o último homem.

Eu existo para assistir ao fim do mundo,
eu existo para a visão beatífica.

CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!

Microlições de coisas, de Murilo Mendes (Edição 2005)

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2. Laura Assis

Do Murilo, já espalhado pela cidade, vou para a Laura Assis, que é quem está agora incrustada em minhas ideias. Já conhecia o trabalho da Laura superficialmente, mas só alguns meses atrás fui ler o seu livro “Depois de rasgar os mapas”, publicado pela Aquela Editora. Eu amei o LIVRO TODO. Isso para mim é uma grande coisa, pois, se um livro tiver dois ou três poemas que me agradem, já me dou por agraciado. Depois, fui buscar mais coisas dela para ler e acabei me encontrando com as maravilhosas plaquetes “Todo poema é a história de uma perda” e “Mecânica de nuvens aplicada.” Estou doido para ler seu livro mais recente, o “Duas vezes o sol”.

VOCÊ DISSE QUE IA ESCREVER UM POEMA

Você disse que ia escrever um poema
com a metafísica das paixões
e a confluência dos corpos,
como o orgasmo suspenso,
um último beijo,
no timbre exato da minha voz.

Você disse que ia escrever um poema
sem a angústia de metáforas mal resolvidas,
sem alegorias perdidas no entendimento,
contando de vez o nome do jogo.

Você disse que ia escrever um poema
na turbulência calculada das grandes decisões
pra virar do avesso minha vida
(que anda mais inerte que a Avenida
Independência às seis da tarde).

Você disse que ia escrever um poema.
Andei meio mundo
atrás dos seus versos.

Você disse que ia escrever um poema.
Você não escreveu o poema.
Mas ele está aqui.

DESENCONTRO

Você deve estar agora
andando por Copacabana,
chorando no chão da sala
ou desistindo de um livro chato.

Quisera eu estar agora
Inteira sob teus quadris.
E estou – enquanto febres
atravessam-me enorme
e deslizo entre dedos
mercúrio, memória
e a tua boca,
a tua boca.

Livros e plaquetes de Laura Assis

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3. Anelise Freitas

A Anelise Freitas é uma das minha poetas favoritas da/na vida. Gosto da esperteza que cada poema seu carrega. Até quando eu não gosto dos poemas na Anelise, gosto que eles tenham sido escritos, porque eles parecem ter vida e inteligência própria. Sei que eles vão conversar com alguém. A Anelise publica pela Macondo, que é essa editora chuchuzinha cheia de boa poesia. O meu livro favorito dela é o “Vaca contemplativa em terreno baldio”. Seu livro mais recente é o “Sozé”, onde está o “Poema do angu”, cujos versos têm me dito muito ultimamente.

POEMA DO ANGU

qual seu jeito predileto de comer angu eu
prefiro comer sem sal com leite mas qual é o seu jeito
predileto de comer angu talvez
você não tenha um jeito predileto de comer angu,
porque você nunca tenha comido angu,
porque angu é uma comida do interior,
porque só as pessoas que comem angu
têm jeito prediletos de comer angu qual
seu jeito predileto de puxar alguém contra
seu corpo eu prefiro
pela cintura trazendo o meu corpo junto mas
qual é o teu jeito de encostar o corpo
em outro corpo nem sempre
a gente sabe dizer sobre o corpo do outro
sobre o corpo do outro eu
gostaria de puxar alguém pela cintura,
talvez você quantos romances
influenciaram a tua vida eu
sempre preferi as mulheres elas sabem
como falar sobre as emoções quantas
histórias em prosa você ainda lembra os romances
se inscrevem nas nossas vidas
e ar continua fraco
enquanto os dias continuam bruscos
e eu só quero saber
de dançar

PORNÔ

um homem não perde
a oportunidade de gozar
da cara
na cara
de uma mulher

Livros de Anelise Freitas, publicados pela Macondo

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4. Renata de Aragão Lopes

Vou deixar a apresentação da Renata de Aragão Lopes nas mãos da outra grande poeta Elisa Lucinda, que diz: “Renata, com seu poder de síntese, sua lira, seu ritmo impecável em discretos sonetos, seus versos harmonicamente livres e a sua natural economia de palavras nos apresenta um coletivo de ninhos, para não desperdiçar a metáfora”. A Renata é a confeiteira do Doce de Lira, onde está sempre postando novos textos.

M’ÁGUA

ele falou sem pensar. e a magoou.
ela pensou sem querer. e se trancou.
a moça
tranca mágoas
no fundo de si.

ele quis se desculpar. e a abraçou.
ela desculpou. e não sorriu.
a moça magoada
nem mesmo abraçada
sorri.

moça
tem coração-poço.
moço
tem coração-poça.
o poço é profundo,
a poça é rasa.
a moça represa,
o moço vaza.
ele seca,
ela alaga.

O POETA E A CIRANDA

palavra é grão e palha
poesia é o que passa
ou o que falha?

Doce de Lira, de Renata de Aragão Lopes (Funalfa, 2013)

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5. Maria Diva Boechat

Se você quiser saber mais sobre a Maria Diva Boechat, sugiro ler esta entrevista que ela deu à Tribuna de Minas. Eu gosto muito dos dois livros que tenho aqui em casa: “Cerâmicas” e “Sobre amor e ervilhas”. A Maria Diva é uma poeta muito eclética, e seus poemas vão do mitológico ao cotidiano com uma fluidez que nos pega desprevenidos. Os poemas dela costumam ser mais longos do que estes que eu selecionei. Contudo, mesmo curtos, acho que minha seleção representa bem o que gosto tanto nesta poeta: o corte.

ÉDEN

Quando brotam belezas
entre a matéria esgarçada da vida,
quase perdoo a existência

ADÚLTERA

Traía-se.

ANGÚSTIA

Você nunca me houve.

Sobre amor e ervilhas, de Maria Diva Boechat (Funalfa, 2015)

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6. Knorr

O Knorr escreve de vários jeitos. Mas os que eu mais gosto são os poemas que você tem que VER. São poemas visuais. “Olho”, “Olho 2” e “Totem” estão entre meus “livros” favoritos (as aspas são por conta de seu formato: são caixas de cartões portais). Eu nunca tenho nada do Knorr em casa, pois, sempre que compro, acabo dando de presente para alguém, pois quero que as pessoas desfrutem daquele alegria de descobrir e inventar significados. Aliás, se você quiser saber mais sobre poesia visual e sobre o Knorr, sugiro este artigo, dos pesquisadores Lívia Bertges e Vinícius Pereira (UFMT).

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7. Monica Giraldo Hortegas

A poesia da Monica Giraldo Hortegas é cheia de vida. É isso o que me seduz em seus versos: tem vida ali pra mim. Tem comida, tem sexo, tem viagem, tem brincadeiras, tem mulheres, tem homens, tem tempo para apreciar as coisas. Éramos colegas de trabalho quando Monica me mostrou seus poemas, e eu só sosseguei quando vi publicado o seu primeiro livro, o “Passeio de Barco”; um deleite. A Monica também escreve aldravias. Não sabe o que é isso? Dá uma olhadinha aqui então.

MATE E LIMÃO

Minha infância tinha o gosto salgado
do sol das onze da praia de Copacabana.
Não tinha buraco na camada de ozônio,
nem proteção UVA, nem filtro solar.
Tinha mate e limão
e Chicabon.
Tinha areia no cabelo até o fim do dia.
Tinha dever de casa
e o colégio da esquina.
Não havia rebeldia, nem anorexia,
obedecia.
Na minha infância, eu era menina
e feliz.

BREVIDADE

Com o tempo
as pequenas alegrias
viram grandes.
e as grandes,
nem tanto…
Com o tempo
Nada há de melhor
que um fim de tarde,
um livro, uma rede,
uma brevidade.

Aldravia – poesia do instante, de Monica Giraldo Hortegas (Funalfa, 2017)

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8. Gustavo Goulart

Quando li o primeiro livro do Gustavo Goulart, o Estado ao vento, eu soube que tinha encontrado um poeta para acompanhar. Pouco metafísicos e muito metalinguísticos, os poemas do Gustavo têm uma coisa que me capta muito imediatamente: uma oscilação entre dúvida e assertividade. Bem, talvez isso seja coisa da minha leitura, pois uma das coisas que gosto na poesia dele é de tentar ler, para além do poema, um pouco do poeta, do poetar.

TÍTULO

difícil
escrever na
língua
de Camões
e de Itabira

MAIS NADA

Se quiserem escrever sobre mim
depois de eu morrer

Há apenas o intervalo entre minha
nascença e minha morrença

Claro: preferi sempre o eu-menino
mas sei que a infância não é divina

Amor não há. Mas sei que amei
todas as mulheres belas que sei

Entendi que cães são fieis e bons
Gente é coisa que guarda opção

Tudo que importa é o clã
Sem clã não há homem

Ouvi de um mau escritor?
literatura anda sempre com o social

Ouvi besteiras como respirei
e respirei a vida inteira

Nada sei das coisas. Sem metafísica:
passei a vida sem ilusões

Sabia daquilo em que nasci:
o mundo dos homens e dele somente

Sei que não há nada antes do parto
E depois da morte nada há

E este ato de ser poeta só aparta
no estar a fazer. Mais nada

Livros do poeta Gustavo Goulart

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9. RT Mallone

Vou terminar minha lista de maneira inusitada, como tenho gostado de fazer nesse Prova dos 9. O último poeta da minha lista é o rapper RT Mallone. Peraí, rapper é poeta? Na minha concepção, é sim. Afinal, se o Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura e o Chico Buarque ganhou o Prêmio Camões, acho que não vou discordar que os músicos e seus versos são, à sua maneira, poetas. Tenho curtido muito as letras do RT Mallone. Gosto de seu jeito de rimar, de não rimar, de pesar a mão, de abrir as portas, de dizer palavras em arranjos que me surpreendem. Para acompanhar o trabalho dele, recomendo o seu perfil no Instagram e seu canal no Spotify.

INTERLÚDIO

O pão que o diabo amassou

Quem dera que tivesse amassado por mim
Além dela quem terá rezado por mim?
Espera!

Mesmo que a mentira amargasse com seus braços largos e perna curta
Mesmo que um bom filho a casa tornasse próspera a véspera de uma luta
E que o certo esteje nas linhas mortas pelas curvas
A esperança dizia: Nasça, enquanto eu fazia massa
Pra uma massa que não me escuta, em fim
Cansei de acordar no breu pra encher de creme
Sonhos de uns filha da puta que não dar valor pros meu
Um dia o dia rendeu
Mais que a tinta da caneta
Alerta tempo falta
Seca as letra
Letal e trágico um balcão
E um preto tão perto e tão longe de uma nota preta, ah fio

A grana não vale o preço
Psiu!
A gana não vale um terço
A grama não vale
A dama do vale eis
A minha depressão exclamando que aquele balcão era dela o berço, viu?

Ao final de cada assovio me matei
Fim de mês
Começo de mês
Me matei de vez!
E de vez em quando
É, quando eu farei música de vez? (em canto)
Dei frutos de vez
Na vez de ser eu enquanto
E como quem ouve saberia que eu me matei pra tentar viver de canto?

Dedicando além da conta, conta?
Por dois!
Rt nos contos hoje
Ontem victor nas contas pois contra o

Sufoca, só foca, só broca sem cota saí grota
E só corta quando alguém contar que descontar
Nas gotas que esgota de suor, não conta

Ninguém te contou?
Meu sonho sou eu!
E nunca que eu sou menos que isso

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Interlúdio, de RT Mallone (Videoclipe)

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Ulisses Belleigoli é psicanalista, escritor e professor, mas gosta mesmo de ser chamado de contador de histórias. Gosta de cinema, copa do mundo, poesia e ficção científica. É um dos anfitriões da Varanda.

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