Por fim, não aquento mais. Quando começam todos a cair-me em cima fico zangada, depois triste e, finalmente, acabo com o coração virado do avesso, a parte má para fora e a parte boa para dentro, e continuo a tentar encontrar uma maneira de me tornar naquilo que gostava de ser, e que poderia ser se… se não existisse mais ninguém no mundo.

Diário de Anne Frank

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(Imagem: PRRINT)

“Me conta sobre você” é uma pergunta comum em muitas situações: primeiros encontros – aprendi isso assistindo comédias românticas –, entrevistas de emprego, primeiras conversas constrangedoras. É uma pergunta bem ridícula, comum, clichê, mas difícil, porque a maioria das pessoas não se conhece realmente e, caso se conheçam, não querem assumir os próprios defeitos ou parecerem metidas enquanto enumeram suas poucas qualidades.

Isso me faz pensar – pendurado de cabeça para baixo feito um morcego no sofá, já que só consigo raciocinar assim – e eu penso em todas as coisas que gosto, nas que não gosto, no cheiro do meu corpo e no tamanho do meu cabelo. Isso deve ser um bom resumo do que sou.

Deveria ser, mas as pessoas me mudam ao bel-prazer como um boneco de pano, mudo e sem opinião. Está aí, meu resumo: um grande boneco, formado, com opiniões, aptidões, falas, mas mudo e transformado no que querem que eu seja. E e não o que eu sou de verdade.

Meu nome é Bernardo, ao menos esse foi o nome que eu escolhi para mim aos treze anos, depois de uma tarde chuvosa, quando perguntei à minha mãe “qual seria meu nome se eu fosse um garoto?”, e ela afirmou com veemência e toda a certeza em plenos pulmões: “Bernardo!”

Engraçado. Esse já era meu nome preferido antes disso. Quase todos ainda me chamam de Isabela; alguns por despeito, alguns por ignorância. Isso vira meu âmago do avesso. Talvez a única dor que eu seja completamente inapto à transformar em arte.

Tenho dezenove anos. Com quatro, meu pai quebrou meu dente da frente com uma joelhada — sem querer — e isso fez todos os meus dentes se desenvolverem de forma exagerada. Usei todos os tipos de aparelhos grande parte da vida. Na infância, lancei tendências estúpidas na escola, como meias que não combinavam, botas que faziam tropeçar, marias-chiquinhas tortas e — sim! — que meninas deviam fazer capoeira. Meu primeiro movimento feminista foi em benefício próprio para fugir do balé, podem me chamar de egoísta. Não funcionou, de qualquer forma. Fiz balé por muitos anos, sete, mas não sei fazer nenhuma pose.

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(Imagem: Anna Razumovskaya)

Aos onze, aprendi o que era perda e acho que nunca mais parei de perder desde então. Descobri que as coisas não substituem umas às outras, mas que tem um espaço imenso na gente, onde cabe tudo, do vazio às lembranças, ou às coisas novas.

Aos treze, descobri que algumas coisas são grandes demais para que eu resolva. Então não resolvo. Se uma pessoa pensa uma coisa que não me agrada, deixo-a pensar. Se me estresso, fumo. Se estou cansado, me deito e olho as estrelas. Se minha vida fosse um filme clichê, meus problemas desapareceriam, mas quando me levanto eles ainda estão ali, e eu os carrego no ombro como um monstro pesado, e resolvo pedaço por pedaço, como posso. Como deve ser. Como aguento. Só assim mesmo.

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(Imagem: terrasoleil)

Meu bisavô que disse: “vai devagar que as coisas dão certo, meu trem…” — ele não queria que eu fosse bailarina, queria que eu fosse do exército, até pensei sobre, mas deus me livre marchar no Sol escaldante embaixo de um monte de pano.

A primeira coisa difícil de aceitar, ainda pequeno, era que eu era negro. Difícil ser negro em qualquer lugar, mas em uma escola de pessoas ricas, você se destaca sem querer, e as pessoas apontam. Crianças são cruéis. E eu, particularmente, nunca me encaixava e, quanto menos me encaixava, mais me podava para caber. Podando, podando, podando, podando até não sobrar nenhum pedaço, além da raiva por não servir de nada como um ser social.

Aos quinze anos, saí da escola por agressão a um garoto e, se me perguntarem, não me arrependo de nada. Tem uns sistemas que devoram a gente. A gente pode mudar de lugar o tempo inteiro, mas não pode mudar de pele, de rosto, e eu ainda era eu. O bullying me acompanhava. Estar em casa com livros e amigos escolhidos a dedo foi um alívio.

A segunda coisa difícil de aceitar foram os seios crescendo. Eu os batia em todo lugar, punindo-os pelo crescimento que não parava, até que parou. É difícil se entender quando a gente é jovem. É difícil entender que seu pai espera que você lhe apresente um garoto enquanto tudo que você pensa é na sua amiga, e no quanto os olhos dela são bonitos, no jeito que ela joga o cabelo. Olha, demora uma penca até a gente entender as coisas que se passam no coração e no corpo. Psicólogos dizem que adolescência é fase ruim, mas é engraçado como os adultos se esquecem disso quando crescem.

Falar de pais é complicado, também. Talvez por isso fique para uma próxima.

Agora, falando sobre mim mesmo:

Eu gosto de falar sobre as coisas que entendo e sobre as que não entendo também. Gosto de barras de chocolate com amendoim, gosto de queijo cheddar cremoso no lanche do Subway, gosto que minha cachorra chame Dorotheia, mesmo que todos odeiem esse nome e falem que ele é feio.

Gosto de cheiro de bolo saindo do forno e de comer massa crua, gosto de chocolate quente, pessoas com bigodes grandes, e de desenhar sobrancelhas com lápis triangulares azul pastel. Gosto de pintar céus e galáxias com aquarela e do cheiro de tinta no papel. Gosto de cachorros peludos e poltronas reclináveis. Gosto de escrever e falar sobre amor, decepções, dragões e mitologia. Amo RPG como uma parte de mim. E Marvel, amo-a de ponta a ponta.

Gosto de garotas que se parecem com a Summer de 500 days of Summer (500 dias com ela) e gosto de como elas são poéticas e inspiram o lado mais romântico de qualquer pessoa. Gosto de como elas partem corações – mas odeio como uma delas já partiu o meu. Gosto de coisas cor de rosa. Gosto de rap, de como me ajudou a me entender como pessoa, principalmente como me ajudou a entender os outros. Gosto de entender os outros.

Djonga
(Clipe “Junho de 94”, de Djonga. Direção de fotografia: Gabriel Solano e Roberto Riva)

Não gosto de gatos sem pelos, de pessoas que não tomam banho, de mamilos, de pedras verdes. Não gosto de omeletes, avestruzes, blusas apertadas, rabos de cavalo bem presos e coques frouxos. Não gosto de sofás duros, shampoo de chocolate, dor nas costas e qualquer filme que não seja de terror – exceto o da Summer ou algo que me inspire a escrever. Odeio praia e areia entre os dedos, cheiro de protetor solar e engolir água salgada e nojenta sem querer.

Mas se tem uma coisa que eu amo, é Laranja Mecânica. Observo e julgo silenciosamente os visitantes de todas as lojas e tento entendê-los. A divisão entre bem e mal é tão ultrapassada quanto à ideia de queimarem bruxas.

(Autor desconhecido; não detemos os direitos sob essa imagem)

Às vezes me odeio. Odeio saudades, distância, ausências e o fato de que poderia fazer tudo, mas não sou corajoso o suficiente. Estou diretamente atrelado aos meus defeitos e às coisas que odeio, mais do que às que amo.

Amo, principalmente, o fato de que ninguém me conhece. Nem você que leu esse texto, nem meu analista. Nem eu mesmo.

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